O que pensam as crianças sobre a leitura em voz alta?

Resultados de uma pesquisa australiana

Que a leitura em voz alta é o fator mais relevante para o desenvolvimento da relação entre a criança e a palavra escrita, é algo que uma pletora de estudos científicos atesta há décadas. A leitura em voz alta tem impacto sobre o desenvolvimento da linguagem, dos vocabulários receptivo e ativo, da consciência fonológica e dos conhecimentos sobre o material impresso. Ela também desenvolve a compreensão auditiva, a compreensão de leitura e as habilidades cognitivas. As pesquisas indicam, ainda, que a leitura em voz alta modela as atitudes da criança com relação à leitura, sendo um fator importante para que ela tenha motivação para ler. Por fim, quando realizada em casa, ela ajuda a estreitar os vínculos entre pais e filhos, criando associações duradouras entre leitura e prazer.

Embora muito já se saiba sobre todos esses benefícios, há poucas pesquisas documentando a percepção da criança com relação ao momento da leitura em voz alta na escola e em casa. Como as crianças vêem a leitura em voz alta feita para elas? Do que mais gostam e do que não gostam durante esse momento? Como essa prática impacta suas percepções sobre a leitura?

Neste artigo, você vai conferir as principais conclusões de um estudo australiano que investigou as percepções de crianças de 6 a 12 anos com relação à leitura em voz alta em casa e na escola. Os resultados lançam luz sobre aspectos importantes dessa prática, servindo como orientação para extrair dela seu máximo potencial. O estudo, realizado com 220 crianças divididas em 2 coortes (6-9 anos e 10-12 anos) abordou as seguintes questões:

  • atitude das crianças com relação à leitura em voz alta
  • frequência da realização da leitura em voz alta
  • frequência de leitura autônoma
  • incentivo à leitura em casa e na escola
  • incentivo à leitura no passado

Atitude das crianças com relação à leitura em voz alta

A maioria das crianças demonstrou uma atitude positiva com relação à leitura em voz alta praticada em casa e na escola, com apenas 23,8% alegando preferir a leitura autônoma (seja por se considerarem bons leitores ou por não gostarem das interrupções que costumam acontecer durante a LVA — voltaremos a esse ponto a seguir).

Benefícios afetivos percebidos

A maioria das crianças de ambos os coortes relataram gostar de leitura em voz alta. Os benefícios afetivos percebidos foram agrupados com base em comentários das crianças sobre emoções, memórias e visualização

A maioria das crianças afirmou sentir-se “feliz” ou “relaxada” durante a LVA. Demonstraram, ainda, uma preferência por livros engraçados. Relataram que a leitura em voz alta lhes trazia lembranças da infância e que as histórias lhes faziam recordar de coisas que elas mesmas tinham feito. As crianças comentaram também sobre o fato de visualizarem melhor a história, bastando apenas “relaxar e deixar a história se desenrolar na imaginação”. Elas comentaram também que, quando ouvem a leitura, sentem-se como se estivessem dentro da história”. 

74-78% das crianças associaram leitura em voz alta com deleite, tanto em casa quanto na escola.

“Não gosto de leitura em voz alta porque…”

As crianças que afirmaram não gostar de leitura em voz alta mencionaram motivos de ordem física ou emocional, tais como:

  • “o professor lê muito baixo e não consigo escutar”;
  • “o professor lê muito alto e me incomoda”;
  • “os outros alunos ficam interrompendo o tempo todo e acabo me distraindo”;
  • “a leitura é muito monótona/sem expressão e fico entediado”;
  • “os livros escolhidos são chatos”;
  • “não gosto/não consigo entender os livros que o professor está lendo”;
  • “fico entendiado/ irritado/ frustrado se a leitura é muito lenta, muito baixa ou constantemente interrompida por outras crianças”;
  • “não consigo me conectar com as experiências da história”;
  • “consigo ler bem sozinho e não gosto dos outros alunos interrompendo a leitura”;
  • “é frustrante/irritante sentar para ouvir uma história quando ninguém ao redor está prestando atenção”;
  • “não gosto, fico desconfortável/tonto e acho que é uma perda de tempo”.

Assim, a velocidade e o ritmo de leitura, o excesso de interrupções (seja de outras crianças ou do próprio professor), a capacidade de leitura autônoma da própria criança, a administração da sala de aula e a resistência emocional/fisiológica foram as principais razões apontadas pelas crianças que afirmaram não gostar de leitura em voz alta.

Frequência da leitura em voz alta

(A) Em casa:

  • A maioria das crianças (62.7%) afirmou que gostaria que a leitura em voz alta em casa ocorresse com mais frequência;
  • 27% das crianças afirmou que ninguém lia para elas em casa;
  • Da porcentagem que tinha LVA em casa:
    • apenas 17,7% relatou ser uma prática diária; 
    • 25,8% relatou ser uma prática frequente;
    • 56,5% relatou ser uma prática ocasional.

(B) Na escola

Do coorte de crianças menores (6-9 anos):

  • 3,4% afirmou ter LVA diária em sala de aula;
  • 23,7% afirmou que a LVA ocorria com frequência;
  • 68,1% afirmou ter LVA de vez em quando; 
  • 4,8% afirmou que o professor nunca lia em voz alta.

Algo similar foi verificado no coorte de crianças maiores (10-12 anos): 

  • 2,4% relatou ter leitura em voz alta diária na escola; 
  • 26,2% afirmou ter LVA frequente;
  • 67,2% afirmou ter leitura em voz alta de vez em quando; 
  • 4,1% reportou que o professor nunca lia em voz alta em sala de aula.

👉 A baixa frequência da leitura em voz alta foi considerada preocupante pelos pesquisadores. Não apenas todo o corpo de pesquisas sobre a LVA recomenda a leitura em voz alta diária ou frequente, como as próprias crianças demonstaram se ressentir de que a leitura não ocorresse mais intensamente.

Os pesquisadores concluíram que o incentivo ao prazer de ler é uma responsabilidade tornada órfã, abandonada tanto pelos professores quanto pelos pais.

Em que momento o professor costuma ler em voz alta?

As crianças mencionaram que o professor costuma ler em voz alta:

  • depois do lanche;
  • no fim do dia;
  • como prêmio/recompensa;
  • quando os alunos terminam as tarefas;
  • em dias especiais;
  • quando é preciso preencher o tempo;
  • somente nos dias de visita à biblioteca.

“Falta de tempo” foi a razão mais mencionada para a pouca ocorrência da leitura em voz alta em sala de aula, já que “só tem leitura quando terminamos a tarefa”, ou “depende de termos tempo livre ou não”. Outros alunos comentaram que, na escola, eles assistiam a filmes em vez de ter um momento de LVA.

As respostas das crianças por vezes refletiam as exigências do currículo, com afirmações como “temos de fazer primeiro as tarefas mais importantes, como matemática e redação”.

👉 A atitude das crianças com relação à leitura em voz alta é em geral positiva. Porém, na escola, ela é vista como um “luxo”, um “prêmio”, e não “estudo de verdade”.

Os achados da pesquisa indicam que a leitura em voz alta realizada na escola tende a enfatizar demasiadamente o aspecto do desenvolvimento das habilidades, à custa do deleite. As questões levantadas lançaram luz sobre as razões por que algumas crianças não gostam da leitura em voz alta, incluindo: excesso de interrupções durante a LVA pelo próprio professor (para ensinar algum ponto), excesso de perguntas dirigidas às crianças e um foco excessivo nas palavras, em prejuízo do texto como um todo. Essas estratégias frequentemente provocam uma resposta emocional negativa nas crianças.

Na percepção da criança, por que motivo o professor lê em voz alta?

As crianças responderam que o professor lia em voz alta para:

  • “acalmá-las”;
  • “ensinar-lhes palavras novas e mundos desconhecidos”;
  • “ensiná-las algumas habilidades, como previsão”;
  • “preencher o tempo”.

Alguns alunos observaram que o professor “não gostava de ler”, geralmente comparando-o com outro professor, em respostas como: “Ele não gosta muito de livros, mas a professora fulana de tal gosta muito…”

O que os professores costumam ler em voz alta?

Os tipos de livros mais mencionados foram:

  • livros de histórias;
  • livros engraçados/divertidos;
  • livros ilustrados.

Nenhuma das crianças mencionou livros de poemas, indicando que os professores não costumam ler esse gênero em voz alta na sala de aula.

Frequência de leitura autônoma

Muitas crianças afirmaram que liam como requisito para fazer alguma tarefa da escola; outras afirmaram que liam porque eram incentivadas pelos pais. Em alguns casos, as crianças mencionaram ser forçadas ou chantageadas a ler. Uma das crianças afirmou: “Meu pai me força a ler para que eu tire boas notas”. Comentários como “eu sei ler bem, mas prefiro não ler” foram frequentes. Outros alunos relataram dificuldade na leitura: “Gosto de ler, mas não sei ler bem, então acho difícil ler palavras compridas.”

Razões mencionadas pelas crianças para não pegarem em livros para ler:

  • “Prefiro fazer outra coisa”;
  • “Não sei ler muito bem”;
  • “Não tenho tempo para ler”;
  • “Acho entediante ler”.

As crianças frequentemente mencionavam esportes ou eletrônicos como atividades mais atraentes do que a leitura. Muitos mencionaram preferir “jogar Minecraft”, “assistir a desenhos” ou “jogar no meu iPad” a ler. Uma das crianças afirmou ser “viciada em tecnologia”. Um pequeno número de crianças afirmou que não lia com mais frequência devido à quantidade de tarefas de casa, por não ter acesso a livros ou por achar a leitura uma atividade muito solitária.

👉 Três fatores estão entre os preditores mais importantes da frequência de leitura entre crianças de 6 a 17 anos: (i) a frequência de exposição à leitura em voz alta; (ii) o prazer que a criança/adolescente tem na leitura; (iii) o nível de leitura da criança/adolescente. Levando-se em conta que a motivação para a leitura é multidimensional, é interessante observar que apenas 42,7% dos alunos entrevistados consideravam-se leitores diários. O resultado enfatiza a importância da exposição à leitura em voz alta inclusive para crianças maiores e adolescentes, a fim de evitar o fenômeno da aliteracia (ou seja, da rejeição à leitura).

Incentivo à leitura em casa

A leitura em casa é majoritariamente realizada pela mãe ou por outra figura feminina. O envolvimento do pai e de outras figuras masculinas (avô/irmão etc.) é geralmente baixo.

Muitas crianças do segundo coorte (10-12 anos) afirmaram que já sabiam ler e, por isso, ninguém lia para elas. Essas respostas refletiam não uma preferência, mas uma crença de que, uma vez que a leitura autônoma fora atingida, já não era mais responsabilidade dos pais incentivar a leitura.

👉 Costuma-se afirmar que uma das coisas mais importantes que os pais podem fazer pelos filhos, além de mantê-los saudáveis e seguros, é ler para eles. Vários relatórios internacionais têm demonstrado o declínio da prática da leitura em voz alta para as crianças em casa, especialmente após os 5 anos de idade. O fato de que 70% dos participantes da pesquisa afirmaram desejar que os pais lessem em voz alta com mais frequência indica que a leitura no lar deve ser priorizada.

Em muitas ocasiões, as crianças justificavam a baixa frequência da leitura em voz alta pelos pais afirmando que “minha babá lê para mim porque mamãe e papai estão no trabalho”, ou “minha mãe não pode ler para mim porque ela tem de cozinhar, lavar roupa e lavar louça”. As crianças afirmavam “sentir falta da leitura em voz alta” e se mostravam genuinamente preocupadas por que os pais haviam parado de ler para elas.

Por isso, os pais devem buscar maneiras de tornar mais frequentes os momentos de leitura para os filhos em casa. As escolas também devem priorizar a realização da leitura em voz alta, até mesmo para suprir aqueles casos em que os pais da criança não possam realizar a LVA com mais frequência.

Incentivo à leitura no passado

A maioria das crianças relatou ter vivenciado a leitura em voz alta no passado (92,6%), pelos pais, outros parentes ou professores. Os comentários das crianças sobre essas experiências faziam sempre referência a quem havia lido em voz alta, onde e, às vezes, por que alguém lia para elas: “Papai lia para mim no sofá, porque eu gostava mais de ouvir história quando estávamos pertinho um do outro”. É interessante observar que a dimensão afetiva da leitura em voz alta era sempre enfatizada pelas crianças ao se lembrarem do passado.

Recomendações:

Os achados da pesquisa confirmam a atitude positiva das crianças com relação à leitura em voz alta, e também a necessidade de aumentar a frequência dessa prática, tanto em casa quanto na escola.

Os pesquisadores finalizam o estudo com as seguintes recomendações:

  • As escolas precisam incentivar os professores a lerem para os alunos com mais frequência ao longo da educação primária;
  • As crianças devem ser incentivadas a fazer mais leitura recreacional, conforme forem adquirindo habilidades de leitura;
  • A leitura em voz alta em casa e na escola deve continuar mesmo depois da alfabetização, e incluir um amplo leque de tipos textuais;
  • As escolas devem assumir o papel fundamental de divulgar aos pais a importância da continuidade da leitura em voz alta em casa, a fim de aumentar o nível de consciência sobre a importância da LVA mesmo após a alfabetização.

(Este artigo foi baseado no estudo “Reading aloud: children’s attitudes toward being read to at home and at school” (2018), que pode ser acessado aqui.)

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