Leitura em papel x na tela: vamos aos fatos

Anos atrás, recebi o panfleto de uma escola que orgulhosamente anunciava ter substituído todos os cadernos dos alunos por tablets de última geração, e todos os livros didáticos por formatos digitais incrementados com vídeos e jogos para “potencializar” o aprendizado.

Não sei que fim levou essa escola, mas sei que muitos pais ainda hoje podem cair no canto de sereia das maravilhas da era tecnológica, passando a desprezar tudo o que é “arcaico” (como livros de papel e a escrita à mão), acreditando que, em uma era na qual o conhecimento das tecnologias é indispensável, o ideal seria promover o quanto antes a entrada da criança no universo digital.

A defesa, porém, das ferramentas mais tradicionais da educação, como livros de papel, caderno, lápis e borracha, está longe de ser um mero romantismo. No tocante à leitura, a pesquisa científica mais recente vem alertar sobre os riscos das inovações tecnológicas sobre o modo como lemos, aprendemos e pensamos.

A verdade é que estudos publicados desde a década de 1990 confirmam que compreendemos e nos lembramos melhor daquilo que lemos no papel, quando em comparação com a leitura em um dispositivo eletrônico — e isso vale também para os “nativos digitais”, ou seja, a geração que “já nasceu com os dedos no teclado”, como se costuma dizer.

Mas por que essa diferença?

Um dos motivos pelos quais as telas podem prejudicar a compreensão do que lemos é que elas impedem que o leitor navegue e mapeie mentalmente o texto. E, por mais estranho que pareça, o senso de localização é fundamental para uma experiência de leitura satisfatória. Mesmo quando o dispositivo fornece uma barra de progresso, isso não dá ao leitor uma dimensão real do quanto já foi lido e do quanto está por vir. Visualizar “15% da leitura concluída” é muito diferente de segurar nas mãos as páginas já lidas, podendo revisitá-las à vontade e avançar nas páginas ainda não lidas ao bel-prazer.

Ainda, a leitura em telas é cognitivamente e fisicamente mais desgastante do que a leitura em papel. O ato de “rolar o texto” exige um esforço consciente que, mesmo que não percebamos, desvia nossa atenção da leitura. A luz emitida pelos dispositivos, também, faz com que forcemos as vistas, podendo causar dores de cabeça e visão embaçada.

Por fim, os estudos afirmam que, em geral, as pessoas mantêm atitudes diferentes com relação à leitura em telas e à leitura em papel, adotando uma postura mais displicente quando realizam a leitura em um dispositivo eletrônico do que quando lêem em papel.

Os pesquisadores da ciência cognitiva da leitura afirmam, inclusive, que a leitura em telas provoca uma “dissonância tátil”, causa de desconforto no leitor. Sabe a sensação de segurar um livro, sentir a sua densidade, o toque das páginas, o cheiro etc.? A sensação, enfim, de estar lendo de fato? Pois é, isso está ausente na leitura em telas — e, aparentemente, precisamos da experiência sensorial muito mais do que poderíamos supor. Segurar um tablet de 170 gramas enquanto lemos “Guerra e Paz” enviaria ao nosso cérebro mensagens conflitantes, que gerariam uma espécie de dissonância cognitiva. 

Paisagens textuais

Aqui, uma pequena digressão sobre como o cérebro interpreta a linguagem escrita:

Embora as letras e as palavras sejam símbolos que representam sons e idéias, nosso cérebro as considera como objetos físicos. Como explica Maryanne Wolf, autora de “O cérebro no mundo digital”, nosso cérebro não foi programado para ler. Isso significa que ele não traz, em sua “programação original”, circuitos neurais dedicados à leitura (dado que a invenção da escrita é um episódio relativamente recente na história da humanidade).

Assim, esses circuitos são forjados na infância por meio de um arranjo no qual o cérebro se utiliza de uma série de “fios” de outros tecidos neurais especializados — da fala, da coordenação motora e da visão.

Algumas dessas áreas redestinadas do cérebro se especializam no reconhecimento imediato de objetos (é o que nos permite distinguir imediatamente entre uma maçã e uma laranja, sabendo que ambas são frutas, por exemplo). 

Quando aprendemos a ler e a escrever, um processo similar acontece no cérebro: passamos a reconhecer as letras por seus arranjos específicos de linhas, curvas e espaços vazios. Esse processo de aprendizagem requer nossos sentidos: a visão e o tato. Um estudo recente, conduzido na Universidade de Indiana, constatou que os circuitos da leitura de crianças de cinco anos se intensificavam quando elas praticavam a escrita à mão, mas o mesmo efeito não se observava quando digitavam palavras em um teclado de computador. Ainda, quando lemos escrita cursiva, circuitos motores são ativados em nosso cérebro, ainda que nossas mãos estejam imóveis.

Mas não é só isso: o cérebro não apenas interpreta letras e palavras como objetos físicos, mas também textos inteiros como uma paisagem física. 

O cérebro cria uma representação mental daquilo que lemos, como se fossem mapas semelhantes àqueles que criamos do espaço físico. Isso é, na verdade, algo bastante simples de perceber: é uma experiência comum que, ao tentar localizar um trecho que lemos em um livro, nos lembremos da posição do trecho na página (se na página esquerda ou na direita, em cima, embaixo ou no centro da página etc.). 

Essa é uma experiência análoga à de nos lembrarmos de uma paisagem física. Sabemos que a igrejinha fica depois da ponte, e não antes; sabemos também que, no início de “Orgulho e preconceito” (e não no final, nem no meio da história), Elizabeth Bennett é desprezada por Mr. Darcy em um baile.

A topografia de um texto impresso é mais evidente para nós do que um texto na tela. Cada vez que passamos a página de um livro físico, é como se deixássemos pegadas no texto que lemos, ao passo que, a cada “rolagem” ou a cada clique para avançar um texto na tela, o que estava antes desaparece sem deixar vestígios. É mais difícil, quando lemos em um dispositivo eletrônico, visualizar os trechos que lemos no contexto maior da obra. 

Os pesquisadores constataram que a  percepção do local onde estamos é muito mais importante na leitura do que se supunha, e as soluções digitais para esse problema foram até hoje insuficientes para proporcionar o mesmo senso de localização que temos na leitura em papel. Além disso, essa maior dificuldade do leitor em se localizar no texto digital promove um maior desgaste cognitivo — é como se a energia que poderíamos usar para compreender o sentido do texto estivesse sendo consumida pelo esforço de, simplesmente, localizar o início, o meio e o fim do texto.

Não levamos as telas tão a sério, afinal?

Uma série de estudos recentes enfatiza que a própria atitude com que o leitor se aproxima da tela influencia no seu menor aproveitamento da leitura. Um estudo minucioso de 2005, realizado na Universidade Estadual de San Jose, na Califórnia, concluiu que, quando lêem em telas, as pessoas tendem a tomar uma série de atalhos: “escaneiam” o texto mais do que lêem, basicamente buscam por palavras-chave, e raramente relêem o que leram.

Ao lerem na tela, as pessoas tendem a empregar muito menos o que os psicólogos chamam de “regulação metacognitiva da aprendizagem”: atitudes como estabelecer um objetivo para a leitura, reler trechos não compreendidos e verificar a própria compreensão ao longo do caminho.

Essa atitude menos atenta prejudica, por sua vez, a retenção do que foi lido.

E, falando em retenção, outra diferença entre a leitura em tela e a leitura em papel foi verificada em um estudo realizado na Universidade de Leicester, na Inglaterra. O estudo avaliou a compreensão de 50 alunos sobre um texto de economia: metade leu o texto em papel, enquanto a outra metade leu o mesmo texto em um monitor. Os estudantes tiveram desempenho similar, independentemente do meio, mas apresentaram diferenças no modo como se lembravam.

Os psicólogos diferenciam entre “lembrar-se de algo” (uma forma fraca de memória na qual a pessoa se recorda de uma informação e de alguns detalhes do contexto, como o local de onde extraiu a informação) e “saber algo” (uma forma forte de memória que se define pela certeza de que algo é verdade). A conclusão dos pesquisadores que conduziram o estudo é que os alunos que leram o texto no papel aprenderam de forma mais profunda, internalizando as informações melhor do que os alunos que leram o texto na tela. Em suma, eles não precisavam ficar vasculhando a memória para encontrar a informação — ela simplesmente aparecia como parte de seus conhecimentos.

E as crianças?

Ser “nativo digital”, aparentemente, não muda nada: nosso cérebro continua preferindo o papel.

É o que demonstra um estudo de 2012, do instituto Joan Ganz Cooney Center, de Nova Iorque, que avaliou o desempenho de crianças de três a seis anos de idade, após uma sessão de leitura com os pais. As crianças se lembravam melhor dos detalhes da história lidas em papel do que das histórias lidas em e-books com recursos interativos.

Estudos similares confirmam esses resultados. Uma pesquisa conduzida por Julia Parrish-Morris, publicada na revista Mind, Brain, and Education, observou que, ao lerem um livro convencional para crianças de três a cinco anos, os pais relacionavam a história à vida da criança e engajavam na “leitura dialogada” enquanto liam, ao passo que, ao lerem um livro eletrônico com efeitos sonoros, tinham de interromper a leitura frequentemente devido à atitude da criança de pressionar os botões, perdendo o fio da meada da história.

O papel, enfim, triunfa graças à sua simplicidade.

Embora o formato digital apresente vantagens específicas (por exemplo, quando desejamos localizar rapidamente uma palavra-chave em um  texto longo), as informações sobre as vantagens da leitura em papel são importantes para que não abandonemos essa forma mais tradicional de ler. Ao que tudo indica, uma substituição do meio físico, em papel, pelo meio digital, não se operaria impunemente.

Quando pensamos nas crianças e em seus primeiros contatos com a palavra escrita, a necessidade de privilegiar o papel fica ainda mais evidente. Não há nenhum motivo para acreditar que as crianças se beneficiam mais com e-books interativos e aplicativos de histórias animadas do que com o bom e velho livro ilustrado. Pelo contrário: a privação do contato com livros de papel, lápis e caderno pode ter consequências graves sobre o desenvolvimento da relação da criança com a leitura e a escrita.

Por isso, ainda que os eletrônicos façam parte da vida do seu filho, o melhor a fazer é garantir que eles obtenham a maior parte de suas informações dos meios mais convencionais. Ler para eles e presenteá-los com livros de verdade será sempre o melhor negócio. 😉

Quem quiser mais informações sobre o tema pode consultar o artigo original, “Why the brain prefers paper”, disponível aqui

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Inscreva-se e receba novidades por e-mail